A elegância do jornalista Irineu Garcia era facilmente perceptível
pelos trajes que vestia e pelo trato com as palavras. Sempre de terno alinhado,
independente das altas temperaturas do Rio de Janeiro, era incapaz de
pronunciar um palavrão sequer. Do alto de seus 1,90 m, apresentava traços
firmes em seu semblante - familiar pelo bigode sempre bem aparado e pelo início
de uma calvície que denotava respeito e experiência, marcas que lhe
caracterizavam como um homem sábio e seguro. Calmo e reservado, Irineu gabava-se
de não frequentar as praias cariocas, era amante da literatura
latino-americana, apreciador de música erudita e, acima de tudo, um defensor
implacável da cultura. Cronista do Jornal do Brasil e conhecido da grande
parcela da intelectualidade do país nos anos 50, Irineu teve sua melhor ideia
após ouvir gravações francesas de Paul Eluard declamando seu famoso poema
Liberté e de André Gide comentando uma aula de piano.
A partir daquele momento, em meados de 1956, a iniciativa de convidar
Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade para que realizassem algo
semelhante surgiu naturalmente. Para isso, porém, Irineu decidiu montar uma
gravadora independente, com ajuda financeira do amigo Arnaldo Pedro dos Santos.
Nascia, assim, o selo Festa, idealizado, segundo o próprio jornalista, não
para ser um sucesso comercial, mas sim para registrar para a posteridade a
memória da música e da poesia brasileiras. A idéia de gravar poetas declamando
suas próprias obras, até então inédita no Brasil, resultou em 67 discos ao
longo dos 11 anos do selo Festa e contou com a participação de Cecília
Meireles, Paulo Mendes Campos, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Augusto
Frederico Schmidt, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana, entre outras
dezenas de poetas brasileiros. Irineu conseguiria, ainda, gravar poetas
estrangeiros, como o cubano Nicolas Guillén, o espanhol Rafael Alberti, os
chilenos Pablo Neruda e Gabriela Mistral, além do espanhol Federico Garcia
Lorca, nas vozes de atores do teatro espanhol, e Fernando Pessoa, com narração
do português Cinde Filipe. Além da poesia, Irineu também ajudou a registrar em
disco sua admiração pela literatura e pelo teatro. Em 1957, o selo Festa gravou
o livro "O Pequeno Príncipe", de Antoine Saint-Exupéry, uma
preciosidade com tradução de Dom Marcos Barbosa, narração e direção de Paulo
Autran, e música de Tom Jobim.
A habilidade de Irineu em reunir essa constelação de artistas pode ser
entendida pela sua personalidade e sua excelente relação com intelectuais
latino-americanos. Tanto no Brasil quanto em suas viagens ao exterior, o
jornalista cativava e criava laços com os homens mais ilustres da
cultura. Seus contatos no Ministério da Educação e no Departamento de
Difusão Cultural, órgão do Itamaraty dirigido por seu amigo Mário Dias Costa, e
o companheirismo de poetas diplomatas, como Vinicius de Moraes, João Cabral de
Melo Neto e Augusto Frederico Schimdt, facilitavam os caminhos percorridos pela
gravadora. Sua batalha o fazia correr atrás de apoios e patrocínios de
empresas, atitude que se tornaria normal no futuro, mas que era novidade nos
anos 50. E isso era mesmo necessário, já que Irineu não era um homem rico. Seus
maiores bens eram a ousadia e seu jogo de cintura e temperamento,
identificáveis desde sua juventude.
A família de Irineu era de uma pequena cidade chamada Cajuru,
localizada no interior de São Paulo. No dia 17 de junho de 1920, sua mãe,
grávida de nove meses, fizera uma viagem curta para resolver alguns problemas
em Mococa: lá ele nasceu e foi registrado. Logo no início da juventude deixaria
a casa dos pais para se arriscar no principal jornal de Ribeirão Preto. Mas a
cidade rapidamente ficou pequena para suas pretensões e o jornalista se mudou
para o Rio de Janeiro, onde começou trabalhar no Jornal do Brasil. "O
Irineu se desligou muito rapidamente da família, ele vivia em outro mundo, se
interessava por cultura e já ficava claro que ele dedicaria sua vida a
isso", conta a sobrinha e artista plástica Gracita Garcia Bueno, detentora
do acervo do selo Festa nos dias de hoje. Seguir seus próprios caminhos, de
certa forma até de maneira solitária, seria uma marca do jornalista.
Em artigo publicado após a morte de Irineu, Otto Lara Resende escreveu
que "você (Irineu) sempre gostou de gravar o que gosta de ouvir e quer que
os outros ouçam. Por isso você gravou os poetas do Brasil e da América Latina.
No seu nobre coração, você só recolheu poesia e música. E afetos, com que você
partilhou a sua teimosa utopia de liberdade e justiça". A teimosia a que
se refere Otto também se enquadra na insistência e na luta de Irineu por gravar
compositores eruditos brasileiros totalmente desconhecidos do grande público.
Com estrutura precária e pouco dinheiro, o jornalista coordenou o registro, por
exemplo, de peças do barroco mineiro fundamentais para a memória das primeiras
manifestações eruditas no Brasil. Nelas, a Orquestra Sinfônica Brasileira e a
Associação de Canto Coral do Rio interpretam obras de José Joaquim Emérico Lobo
de Mesquita, Marcos Coelho Netto, Francisco da Rocha e Ignácio Parreira Neves.
Um tesouro do século 18 que poderia muito bem ter sido esquecido se não fosse a
ousadia de Irineu.
A exemplo dos poetas que declamavam suas próprias obras, o selo Festa
trazia gravações de peças musicais regidas por seus compositores. Uma das
raridades do acervo, registrada em 1963, é a Missa de São Sebastião, escrita
para três vozes à capela por Heitor Villa-Lobos e até hoje pouco executada
pelas orquestras. Além disso, dois concertos, um para harpa e outro para
violino, de Radamés Gnatalli, um disco intitulado Valsa-Choros com o próprio
Francisco Mignone ao piano. Outros nomes foram os de Cláudio Santoro, Alberto
Nepomuceno e Camargo Guarnieri. De importância desmedida para a construção de
um repertório pianístico brasileiro está a Antologia da Música Erudita
Brasileira, gravada em dois volumes por Arnaldo Estrela, intérprete dos mais
celebrados na época, que passeia por obras do gênero a partir do século 18.
Artistas pouco lembrados, como Brasilio Itiberê, Frutuoso Viana e Luis Cosme
ficaram, assim, registrados para a posteridade.
O musicólogo Regis Duprat lembra-se bem dessa época. Em 1968, admirador
do trabalho realizado pelo selo Festa, procurou Irineu para propor a gravação
de uma obra de André da Silva Gomes, mestre de capela da Catedral da Sé, em São
Paulo, no período colonial. "O Irineu trocava informações, era um sujeito
muito aberto ao diálogo com quem entendia de música", lembra Duprat. Nas
circunstâncias da elaboração da missa de Gomes, que possui 40 minutos de
duração, uma enorme produção era necessária, com orquestra, solistas e coro de
oito vozes. "Era um trabalho significativo e ele coordenou tudo isso com
serenidade absoluta; era como se ele tivesse uma varinha mágica: tudo saia
naturalmente", comenta. A consciência de Irineu era tamanha, lembra
Duprat, que ele jamais desanimava com as dificuldades. "Eu tinha quedas de
entusiasmo e ele dizia: não, Regis, não há razão para isso, estamos
fazendo um trabalho que vai durar séculos, então vale a pena o
sacrifício".
O maestro Julio Medaglia foi convidado para reger a missa de André da
Silva Gomes e assim conheceu Irineu. "Ele vivia envolvido com as
artes, era um homem universal, vivia em função da criatividade humana, dia e
noite", conta Medaglia. Ele se lembra da luta de Irineu para conseguir
registrar a música erudita brasileira como um exemplo de coragem sem
precedentes. "Não havia, na época, leis de incentivo, ele corria
atrás de tudo por conta própria e conseguia". Ainda muito jovem, no
entanto, Medaglia já ficara impressionado ao ouvir os discos dos poetas
recitando suas próprias criações. "Eu ainda não me interessava por artes,
queria ser jogador de futebol, e aquelas gravações me causaram imensa
impressão; foram fundamentais para descobrir meu gosto pela cultura", relembra.
Dos 103 discos do acervo do selo Festa, se a música popular esteve em
falta em termos de quantidade, sua presença não deixou por menos no que se
refere à qualidade. No fim dos anos 50 e início da década de 60, destaque para
as gravações de Lenita Bruno, cantora lírica brasileira mais popular da época,
com Por Toda Minha Vida (músicas de Tom Jobim e Vinicius) e Modinhas Fora de
Moda (gravações de modinhas de Mário de Andrade, Villa-Lobos, Carlos Gomes,
Jaime Ovalle, entre outros). Outra raridade do selo é o disco Festa Dentro da
Noite, último álbum do pianista, compositor e arranjador Oswaldo Gogliano, o
Vadico.
Vadico, conhecido por suas parcerias com Noel Rosa - "Feitio de
Oração", "Feitiço da Vila" e "Conversa de Botequim" -,
indiretamente acabou fazendo parte daquele que seria o disco de maior
notoriedade e reconhecimento do selo Festa. Em maio de 1956, recém-chegado de
Paris, Vinicius procurava um parceiro para musicar sua tragédia grega adaptada
para o carnaval carioca, Orfeu da Conceição. Sua primeira opção foi Vadico, na
época com 46 anos, e responsável pelos arranjos da Rádio Mayrink Veiga. Mesmo
com uma experiente bagagem por ter feito sucesso nas décadas de 30 e 40 com
Noel, e por ter trabalhado como arranjador em Hollywood, com Carmen Miranda,
Vadico acabou recusando o convite de Vinicius. Uns dizem que ele não se
"julgava à altura" de tamanha responsabilidade, outros dizem que ele
estava muito doente. Independente dos motivos, o importante é que o
"não" de Vadico fez com que uma espécie de um complô entre amigos -
como Ronaldo Bôscoli e Chico Feitosa - fizesse com que o Poetinha se
acostumasse com a idéia de que um pianista chamado Antonio Carlos Brasileiro de
Almeida Jobim tinha o gabarito necessário para musicar seu Orfeu. Com Vinicius
já convencido de que encontraria seu novo parceiro, faltava marcar o encontro
oficial, que aconteceria com a ajuda de um amigo em comum, Lucio Rangel. O
local não era difícil de adivinhar: o bar Villarino.