quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Retrato Póstumo de Irineu Garcia



por José Carlos Oliveira
Caderno B – Jornal do Brasil 
08/04/1984

     Às 10 horas da manhã, em Lisboa, morreu Irineu Garcia. Deitara-se nos braços da noite, - a noiva preferencial desse galante cavaleiro – e num cavalo de trapos de treva, levando a noiva na garupa, mergulhou na paz – a paz, meu rapaz, o enlace do noivo com suanoiva, as bodas com mistérios e astros que aguardaste sete anos e mais sete, e outros sete e mais sete, para finalmentena manhã lisboeta, onde o sol bate nos muros encardidos  - finalmente não estares mais ali, na residência de Lia e de lida, e sim na morada que era desde sempre tua namorada – a outra filha de Labão, Rachel, por que serviras tão curta vida por amor tão longo...

     Toda vida é curta quando se tem pequena ambição.

     Um escritor português, que se conhece pela identidade de escritor, foi procurar Irineu Garcia `as 10 horas da manhã e não encontrou Irineu Garcia. Ele já tinha ido a galope no seu cavalo de trapos. Sempre `as 10 horas da manhã, alguém precisava estar com Irineu e só podia ser escritor ou artista. As outras atitudes existenciais não lhe batiam à porta, mas deveriam aguardá-lo pelas cinco horas da tarde no bar onde ele aparecia `as cinco horas da tarde. Em qualquer cidade onde ele estava, os relógios sempre haveriam de marcar cinco horas e ele deveria estar chegando a las cinco em punto de la tarde, ao bar, qual bar? “o bar do Irineu Garcia, rapaz! Aquele bar onde ele chega `as cinco horas, seja qual for a cidade!”

     Dele se pode dizer que bebericava. Whisky. Molhava a boca. Degustava. Conversava. Cinco minutos degustando um gole. Cinco minutos depois, outro gole. A isto se chama bebericar. Os apressados se embriagavam, Irineu Garcia seguia bebericando pelas madrugadas. Roupa escura, gravata. Rosto moreno mouro, nariz curvando-se em adaga. Em outras eras tinha sido visto às cinco da tarde na branca, no tenda dos beduínos, nos saaras ancestrais de onde trouxe aquela pela tisnada de sóis adustos, na adusta solidão dos desertos onde eventualmente o oásis respontam com sabor de tâmaras e de água fresca, mas nunca, em momento algum, repontam as miragens.

     De Irineu Garcia se dirá que era esse beduíno. Na fornalha branca, no cansaço, no sono, na sede, na fome, passaria ao largo da mais deleitável miragem, porquanto os nômades não procuram sonhos e – ao contrário – fogem deles, e por isso é que são nômades.

     Gostava de um tête-a-tête fraterno – mas um cara-a-cara de perfis justapostos, ombro a ombro na meia-luz, no ambiente subordinado – o ritualístico exercício do cochicho, da troca de maledicências inofensivas envolvendo este ou aquele, da permuta de confidências ao pé do ouvido. Era um bom companheiro. Estava sempre muito bem-informado, seguia de longe os avanços e descaminhos dos companheiros. Gostava de quatro cidades. São Paulo, de onde trouxe seu estilo fraternalmente austero: era um daqueles com quem podia se contar. Rio de Janeiro, onde aprendeu a afrouxar a gravata para rir com conforto o seu riso guardado na garganta, formado de estalidos infanto-juvenis, um riso que só seria gargalhada se ele abrisse a boca, mas nessas horas não abria a boca, suas bochechas trêmulas nos diziam: “Ninguém percebe, mas é verdade: Irineu está rindo às garagalhadas!” Lisboa, onde era avatar de Fernando Pessoa. Madri, onde seu coração rejubilava.

     Suavemente passou por aqui, suavemente se foi. No deserto de trapos de trevas onde está agora, o sol não arde; o oásis era isto aqui; as miragens seguem desprezíveis, mas há espiritualidade nesse outro deserto – as dunas impolutas da espiritualidade que vamos subindo, contentes, naquele côncavo, ou fundamento, onde tempo e ampulheta se harmonizam.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A volta da dignidade cultural

por Nicolai Dragos do  Selo “Festa”*

Se foram quatro décadas, quando um autêntico brasileiro, Irineu Garcia batizado pelos deuses de todos os continentes, decidiu deixar para o seu país um registro cultural de valor perene. Muito provável foi um gôsto, um desejo, quem sabe uma ilusão. Sem finalidade confessa, transformou-se no maior gesto de pratiotismo. O filtro aguçado de Irineu ressoou para autênticos valores passados e presentes da música e poesia. Descobrir, conhecer, absorver e enriquecer era a maneira de moldar a consciência cultural brasileira.

Assim nasceu o selo “Festa”, que Irineu gravou para que todos ouvissem o que poucos ouviam e pior, quase ninguém gostava de gravar.

Passaram-se 16 anos da morte prematura do seu idealizador, que em vida conseguiu realizar parcialmente seu sonho. O grande projeto parecia ir na volta comum do esquecimento da história.
Deuses deram a grande visão para Irineu Garcia mas também uma sobrinha não menos visionária. Foi Gracita Garcia Bueno – artista plástica, escudeira fiel do seu tio, desde adolescência, que guerreou para resgatar este patrimônio.

Um acervo impar foi salvo para cultura brasileira! Não é pelo tamanho (mais de 100 títulos) mas pela qualidade de seu conteúdo. O lado excepcional dele é o registro da rica poesia brasileira (maioria recitada pelos próprios poetas – inédito no Brasil) assim como, para época o melhor da música erudita brasileira (de tanto difícil acesso). Toda esta riqueza cultural vai tentar saciar a sede de tantos brasileiros ( e porque não dizer estrangeiros) de conhecer o lado menos popularesco, de um povo criativo, onde a emoção e sentimento é um verdadeiro ancoradouro, mas livre para navegar.

Os nossos poetas, escondidos nas prateleiras das bibliotecas começarão ter voz e força. Vamos ouvir Cecílica Meirelles, Guilherme Almeida, Vinícius de Moraes, Cassiano Ricardo, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade e muitos outros.

Obras poéticas de grandes latino-americanos, de portugueses e espanhóis: Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Frederico Garcia Lorca, Gabriela Mistral e tantos outros.

A música erudita brasileira tem: Claudio Santoro, Francisco Mignone, Radamés Gnatalli, A. Nepomuceno, Heitor Villa Lobos, Camargo Guarnieri e muitos outros, assim como interpretações magnificas de Arnaldo Estrela.

É bom lembrar da valiosa música popular brasileira: Tom Jobim, Vinícius de Moraes, lenita Bruno, João Gilberto, Elizete Cardoso e outros.

É difícil num curto resumo fazer citações sobre muitos que as merecem. Assim, podemos citar Paulo Autran interpretando O Pequeno Príncipe com o belíssimo fundo musical de Tom Jobim.

Esperamos que em pouco tempo o acervo inteiro seja lançado preenchendo um grande vazio cultural. A distribuidora Eldorado, justiça seja feita, abraçou este projeto com todo entusiasmo e empenho. Nossos sinceros agradecimentos para esta Gravadora e Distribuidora que por tradição honram a poesia e a boa música.

Sem nenhum constrangimento, temos de lembrara calorosa acolhida e sincero entusiasmo pessoal do seu Diretor João Lara Mesquita. Nossos agradecimentos.

*texto de divulgação produzido especialmente para o relançamento em CDs através da Gravadora e Distribuidora Eldorado em 2000. 

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O homem que gravou o que queria ouvir - parte 4

O Selo Festa hoje



Por André Toso e Lucas Nobile

Em artigo publicado no jornal O Globo no dia 5 de abril de 1984, Zito Baptista Filho dizia que Irineu sozinho representou um Ministério da Cultura. Efetivamente, isso se deu de 1957 a 1967, com o selo Festa gravando e prensando seus discos. Neste ano, o jornalista vendeu os direitos da gravadora para a Philips, futura Polygram, e hoje Universal. Logo de início, a Philips honrou o nome da Festa e relançou no mercado alguns títulos com os poetas, os jograis (dos quais participou o ator Raul Cortez), as gravações eruditas, "O Pequeno Príncipe", e os registros de música popular de Por Toda Minha Vida, Modinhas Fora de Moda, e, claro, Canção do Amor Demais. Em junho de 1970, a cessão temporária dos direitos para a Philips se encerrou, sem acordo de renovação entre o fundador do selo Festa e a gravadora.

Vinte e quatro anos depois, com a morte de Irineu Garcia, e após acumular muito pó nas prateleiras da então Polygram, os discos da Festa corriam sério risco de cair em total esquecimento. O acervo do selo não constava no inventário de seu criador, que não deixara filhos como herdeiros. Em 1994, a sobrinha de Irineu resolveu saber do paradeiro dos discos e entrou em contato com a Polygram. Depois de um ano e meio de troca de cartas, em outubro de 1996, Gracita recebeu em seu ateliê, em São Paulo, seis caixas repletas de fitas e masters produzidas na época de seu tio. Contando com a ajuda do advogado Henrique Gandelman, Gracita e seu marido Nicolai Dragus, médico romeno, artista plástico e profundo conhecedor de música erudita, iniciaram um processo lento e - por vezes doloroso - de seguir os mesmo passos de Irineu Garcia: o de tocar uma gravadora praticamente independente, investindo dinheiro do próprio bolso. Como proprietária do Selo Festa, Gracita Garcia Bueno continua este trabalho incansável de relançá-lo sempre com o apoio relevante de seu marido e sua afilhada Alexandra Swerts Leandro.

Em 1999, após acordo com a MoviePlay e com a Eldorado, quinze álbuns do selo Festa foram colocados no mercado. Atualmente, os discos do selo disponíveis são Canção do Amor Demais, lançado pela Biscoito Fino, e Vinicius em Portugal, Por Toda a Minha Vida, O Pequeno Príncipe e Sinfonia em Sol Menor, de Alberto Nepomuceno, todos pela Tratore. Até o fim do ano, a gravadora e distribuidora deve relançar o disco Poemas e Canções, de Federico Garcia Lorca.
Entre acordos, decepções e dificuldades diante do desdém e das exigências de gravadoras e de famílias de artistas que fizeram parte do elenco da Festa, Gracita segue na luta para manter vivo o trabalho de seu tio, que tanto fez pela cultura brasileira, sem exigir nada em troca. Fazia apenas por prazer e paixão pela cultura nacional e latina. Consciente do papel de seu trabalho para as futuras gerações, foi o próprio Irineu quem melhor definiu o selo Festa em texto escrito durante o rigoroso inverno português de 1981: "Agora, passados muitos anos, estou tranquilo por não ter me preocupado com o imediato. Tenho a certeza de que Canção do Amor Demais (como muitos outros que produzi de música e literatura) permanecerá como um informe da memória cultural brasileira, como um marco importante da modernização de sua fabulosa música, como criadores e intérpretes indiferentes ao tempo".

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O homem que gravou o que queria ouvir - parte 3

Cultura em terras lusas


Por André Toso e Lucas Nobile
  
Era um dia comum de 1971. Em São Jose dos Campos, Gracita Garcia Bueno estava prestes a se formar no magistério e estudava na casa de uma colega para a prova de biologia. Os livros de genética, no entanto, tiveram que ser abandonados de repente após receber uma ligação de sua mãe pedindo para que comparecesse na casa de sua avó, mãe do Irineu, pois o Irineu Garcia tinha chegado do Rio de Janeiro. Ao chegar, Gracita sentou-se à mesa com os familiares, e ouviu que ele teria de deixar o Brasil em três meses, fora avisado pelos militares e achava melhor não contrariá-los. O destino escolhido: Lisboa.
Segundo Gracita, seu tio estava sempre bem informado sobre os acontecimentos políticos da época, mas era pouco afeito a ideologias. "O incentivo à cultura e a convivência dele com os intelectuais do período - a maioria com tendências de esquerda - fizeram com que ele sofresse perseguições do regime", relembra a sobrinha do jornalista. Ruy Castro, que estava em Lisboa trabalhando na revista Seleções, conta que nunca entendeu muito bem os motivos de Irineu ter deixado o Brasil. "Nunca me pareceu que estivesse em Portugal por problemas políticos - tanto que, em 1974, passou mais de um mês no Rio e, quando chegou de volta a Lisboa, não me disse nada sobre qualquer dificuldade que tivesse tido para entrar ou sair".

Independente dos motivos, Irineu continuou a prestar serviços à cultura em Portugal. Crítico de literatura brasileira e latino-americana, além de comentarista dos mais diversos assuntos em sua coluna Zona Tórrida, no Jornal de Letras, Irineu criava uma ponte entre a inteligência brasileira e a portuguesa. Ele foi responsável, por exemplo, pela montagem da "Ópera do Malandro", de Chico Buarque, em terras lusitanas. "Ele fez o meio-de-campo para a cultura brasileira entrar no país europeu", afirma Gracita. Escrevia colunas e divulgava a literatura nacional, enquanto continuava como correspondente do Jornal do Brasil.

Apesar de bem recebido em Portugal, sua convivência em Lisboa não se comparava às tardes boemias e agitadas da época do Villarino. Apesar de bater ponto no Pabe, um simpático pub frequentado por jornalistas e políticos, Ruy Castro recorda que Irineu era muito solitário, morava em um hotel próximo ao Parque Eduardo VII e não falava de nenhuma mulher que estivesse namorando. Vivia em função de visitas de amigos brasileiros, prometidas por cartas enviadas principalmente por Otto Lara Resende e Jorge Amado. "Ele não dizia nada sobre sua vida pessoal, de vez em quando sumia por duas semanas e voltava contando que havia ido a lugares estranhos", diz Ruy Castro. Como fizera a vida toda, continuava vivendo por e para a cultura. Quando estava prestes a retornar ao Brasil para assumir um cargo de direção da Funarte, faleceu no dia 3 de abril de 1984, após sofrer um infarto fulminante.

Treze anos após interromper os estudos de biologia naquela tarde em que seu tio Irineu anunciara seu auto-exílio, Gracita recebeu uma ligação de Carlos Drummond de Andrade. Com voz fina e serena, o poeta mineiro queria saber se a família iria trazer o corpo do jornalista para o Brasil. A artista plástica foi sincera e disse que não teria condições de pagar o traslado do corpo. "Ele disse para ficarmos tranquilos, pois diversos poetas haviam juntado dinheiro para trazê-lo". Além disso, o vice-governador Darcy Ribeiro e o governador Leonel Brizola auxiliaram nos trâmites. "O Brasil perdeu um de seus melhores representantes na Europa", afirmou Brizola logo após a morte do jornalista. No dia 8 de abril, às oito da manhã, o vôo 711 da Varig pousou em Congonhas trazendo o corpo de Irineu Garcia. Ele seria enterrado na cidade de São José dos Campos, ao lado do túmulo de sua mãe. O selo Festa, como seu próprio criador previra, continua vivo.

domingo, 23 de agosto de 2015

O homem que gravou o que queria ouvir - parte 2

Caminho aberto para a bossa


Por André Toso e Lucas Nobile

Em volta da pequena mesa do bar Villarino, localizado na esquina da avenida Calógeras com a Presidente Wilson, no centro do Rio, poetas, escritores, radialistas e jornalistas se reuniam diariamente após o expediente. Entre garrafas de cerveja e copos de uísque - envoltos pela fumaça de cigarros acendidos um atrás do outro e pelas ideias que surgiam a enxurradas - aqueles artistas criariam boa parcela do que de melhor se produziu de cultura brasileira na época. Seria ali, também, que um encontro entre Vinicius de Moraes, Tom Jobim e Irineu Garcia resultaria naquele que é considerado por muitos como o primeiro registro fonográfico da Bossa Nova. Poeta e compositor, conhecidos do público, descobriram no pouco lembrado jornalista Irineu Garcia a oportunidade de tornar real suas criações.

Foi dali, do Villarino, que surgiu a idéia e o convite para o registro de Canção do Amor Demais, gravado em abril de 1958 pelo selo Festa. As treze faixas do famoso LP foram interpretadas por Elizete Cardoso. Embora estivesse anos sem emplacar um disco de sucesso nas paradas, a cantora era a preferida de Vinicius, mas não a primeira opção de Irineu Garcia. O fundador e diretor artístico da gravadora enxergava Dolores Duran como a voz da vez e ela seria a convidada - em vão. Dolores cobrou um cachê alto demais, até astronômico levando-se em conta a estrutura praticamente amadora do selo Festa, sediado em uma pequena sala da avenida Franklin Roosevelt, no Centro carioca. Diante da recusa de Dolores, Irineu cedeu aos pedidos de Vinicius, e convidaram Elizete, que conseguiu sua liberação junto a Vicente Vitale, diretor da gravadora que ela fazia parte, a Copacabana Discos.

Ao contrário do que se diz, Canção do Amor Demais esteve longe de ser um estouro de sucesso e de vendas, já que teve apenas 2 mil discos prensados e distribuídos. Gravado nos estúdios da Odeon, o LP começou a apresentar mudanças aos ouvidos dos brasileiros, e foi uma espécie de desbravador de caminhos para a transformação drástica e definitiva que seria apresentada meses mais tarde no álbum Chega de Saudade, de João Gilberto. Em Canção do Amor Demais, João, que impressionou o público com a batida sincopada de seu violão nas faixas "Chega de Saudade" e "Outra Vez", discordava do restante do elenco em diversos pontos. De algumas letras de Vinicius, como "Serenata do Adeus", carregada de sofrimento e de pessimismo, e principalmente do jeito de Elizete cantar. Chegou a dizer a ela que aquele tipo de canção não exigia uma voz tão empostada e embargada, mas a cantora lhe deu de ombros e resolveu gravar de seu jeito característico de enaltecer a dor-de-cotovelo.

A gravação de Canção do Amor Demais pela etiqueta Festa chega a levantar uma dúvida um tanto quanto pertinente. Por que artistas de tamanha qualidade resolveram registrar esse disco por uma gravadora praticamente desconhecida, e com uma estrutura física encerrada em "duas salas e algumas cadeiras", como definia Irineu Garcia? Por dois motivos. O primeiro é que, na época, as grandes gravadoras reconheciam o talento desses músicos, mas achavam que sua música era pouco comercial, alegava-se que não venderiam. O segundo é que no selo criado pelo jornalista e boêmio Irineu, eles poderiam registrar seu trabalho com a liberdade que quisessem, pois prestariam contas não a um patrão, mas a um amigo de Villarino. Em 1958, Vinicius ainda tinha a preocupação de manter uma imagem como diplomata do Itamaraty. Embora o trabalho em Canção do Amor Demais se resumisse a letrar canções populares de Jobim, com Irineu, ele tinha o aval para assinar na contracapa "poesia: Vinicius de Moraes", tudo para não alterar os ânimos e evitar qualquer celeuma com as autoridades do governo. Ao escrever a contracapa do disco, Vinicius abusou da diplomacia. De tanto zelo com as palavras a serem escolhidas, e de maneira até estranha, o poeta nem sequer menciona o violão de João Gilberto. Junto ao nome de João, também foram relegados à omissão outros músicos participantes, como o baterista Juquinha, o flautista Nicolino Cópia, o Copinha, o violinista Irani Pinto, o trompista Herbert, o contra-baixista Vidal e os trombonistas Gaúcho e Maciel. Segundo o próprio Irineu, a ausência dessa ficha técnica do disco se deu por uma certa inexperiência do produtor.

Descuido esse contrário ao clima de amizade e descontração iniciado entre Irineu e os artistas em dezembro de 1957. Tom teve total liberdade para trabalhar com as orquestrações - sem orçamento, com grande parte do pagamento saindo do bolso do próprio Irineu -, Vinicius melhorava alguns poemas e criava os que estavam faltando. A afinidade entre os três fazia o trabalho fluir, e até mesmo o impasse em relação ao título do disco foi resolvido de forma amistosa. Vinicius sugeriu Eu não Existo sem Você, enquanto Tom optou por Chega de Saudade. Irineu, como ele mesmo declarou, por ser o dono, malandramente recomendou e aprovou Canção do Amor Demais.


Embora muitos considerem Canção do Amor Demais como o marco inicial da Bossa Nova, na época, o grande público não chegou a ser completamente atingido por suas primeiras inovações musicais. "Esse impacto aconteceu principalmente entre outros músicos e cantores. Os Cariocas, por exemplo, ouviram o disco da Elizete e já quiseram gravar "Chega de Saudade" antes mesmo que o João Gilberto fizesse isso", diz o jornalista e escritor Ruy Castro. Ainda nos corredores da gravadora Columbia, Badeco, violonista dos Cariocas, abordou João e confessou que precisaria aprender a reproduzir aquela batida tão diferente. Não conseguiria. Aquele jeito de tocar ainda era inusitado demais para ser desvendado pelos músicos. João se ofereceu e gravou "Chega de Saudade" com Os Cariocas, poucos meses antes de gravar seu primeiro LP, em julho de 1958, e de espantar o mundo com a combinação perfeita entre voz, violão, bateria, letras e arranjos que poderiam ser definitivamente considerados Bossa Nova.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O homem que gravou o que queria ouvir - parte 1


Defensor das artes, o jornalista Irineu Garcia abusou da coragem ao criar uma gravadora independente e conseguir registrar um verdadeiro tesouro da cultura nacional


Por André Toso e Lucas Nobile

A elegância do jornalista Irineu Garcia era facilmente perceptível pelos trajes que vestia e pelo trato com as palavras. Sempre de terno alinhado, independente das altas temperaturas do Rio de Janeiro, era incapaz de pronunciar um palavrão sequer. Do alto de seus 1,90 m, apresentava traços firmes em seu semblante - familiar pelo bigode sempre bem aparado e pelo início de uma calvície que denotava respeito e experiência, marcas que lhe caracterizavam como um homem sábio e seguro. Calmo e reservado, Irineu gabava-se de não frequentar as praias cariocas, era amante da literatura latino-americana, apreciador de música erudita e, acima de tudo, um defensor implacável da cultura. Cronista do Jornal do Brasil e conhecido da grande parcela da intelectualidade do país nos anos 50, Irineu teve sua melhor ideia após ouvir gravações francesas de Paul Eluard declamando seu famoso poema Liberté e de André Gide comentando uma aula de piano.

A partir daquele momento, em meados de 1956, a iniciativa de convidar Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade para que realizassem algo semelhante surgiu naturalmente. Para isso, porém, Irineu decidiu montar uma gravadora independente, com ajuda financeira do amigo Arnaldo Pedro dos Santos. Nascia, assim, o selo Festa, idealizado, segundo o próprio jornalista, não para ser um sucesso comercial, mas sim para registrar para a posteridade a memória da música e da poesia brasileiras. A idéia de gravar poetas declamando suas próprias obras, até então inédita no Brasil, resultou em 67 discos ao longo dos 11 anos do selo Festa e contou com a participação de Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana, entre outras dezenas de poetas brasileiros. Irineu conseguiria, ainda, gravar poetas estrangeiros, como o cubano Nicolas Guillén, o espanhol Rafael Alberti, os chilenos Pablo Neruda e Gabriela Mistral, além do espanhol Federico Garcia Lorca, nas vozes de atores do teatro espanhol, e Fernando Pessoa, com narração do português Cinde Filipe. Além da poesia, Irineu também ajudou a registrar em disco sua admiração pela literatura e pelo teatro. Em 1957, o selo Festa gravou o livro "O Pequeno Príncipe", de Antoine Saint-Exupéry, uma preciosidade com tradução de Dom Marcos Barbosa, narração e direção de Paulo Autran, e música de Tom Jobim.

A habilidade de Irineu em reunir essa constelação de artistas pode ser entendida pela sua personalidade e sua excelente relação com intelectuais latino-americanos. Tanto no Brasil quanto em suas viagens ao exterior, o jornalista cativava e criava laços com os homens mais ilustres da cultura. Seus contatos no Ministério da Educação e no Departamento de Difusão Cultural, órgão do Itamaraty dirigido por seu amigo Mário Dias Costa, e o companheirismo de poetas diplomatas, como Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto e Augusto Frederico Schimdt, facilitavam os caminhos percorridos pela gravadora. Sua batalha o fazia correr atrás de apoios e patrocínios de empresas, atitude que se tornaria normal no futuro, mas que era novidade nos anos 50. E isso era mesmo necessário, já que Irineu não era um homem rico. Seus maiores bens eram a ousadia e seu jogo de cintura e temperamento, identificáveis desde sua juventude.

A família de Irineu era de uma pequena cidade chamada Cajuru, localizada no interior de São Paulo. No dia 17 de junho de 1920, sua mãe, grávida de nove meses, fizera uma viagem curta para resolver alguns problemas em Mococa: lá ele nasceu e foi registrado. Logo no início da juventude deixaria a casa dos pais para se arriscar no principal jornal de Ribeirão Preto. Mas a cidade rapidamente ficou pequena para suas pretensões e o jornalista se mudou para o Rio de Janeiro, onde começou trabalhar no Jornal do Brasil. "O Irineu se desligou muito rapidamente da família, ele vivia em outro mundo, se interessava por cultura e já ficava claro que ele dedicaria sua vida a isso", conta a sobrinha e artista plástica Gracita Garcia Bueno, detentora do acervo do selo Festa nos dias de hoje. Seguir seus próprios caminhos, de certa forma até de maneira solitária, seria uma marca do jornalista.

Em artigo publicado após a morte de Irineu, Otto Lara Resende escreveu que "você (Irineu) sempre gostou de gravar o que gosta de ouvir e quer que os outros ouçam. Por isso você gravou os poetas do Brasil e da América Latina. No seu nobre coração, você só recolheu poesia e música. E afetos, com que você partilhou a sua teimosa utopia de liberdade e justiça". A teimosia a que se refere Otto também se enquadra na insistência e na luta de Irineu por gravar compositores eruditos brasileiros totalmente desconhecidos do grande público. Com estrutura precária e pouco dinheiro, o jornalista coordenou o registro, por exemplo, de peças do barroco mineiro fundamentais para a memória das primeiras manifestações eruditas no Brasil. Nelas, a Orquestra Sinfônica Brasileira e a Associação de Canto Coral do Rio interpretam obras de José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Marcos Coelho Netto, Francisco da Rocha e Ignácio Parreira Neves. Um tesouro do século 18 que poderia muito bem ter sido esquecido se não fosse a ousadia de Irineu.

A exemplo dos poetas que declamavam suas próprias obras, o selo Festa trazia gravações de peças musicais regidas por seus compositores. Uma das raridades do acervo, registrada em 1963, é a Missa de São Sebastião, escrita para três vozes à capela por Heitor Villa-Lobos e até hoje pouco executada pelas orquestras. Além disso, dois concertos, um para harpa e outro para violino, de Radamés Gnatalli, um disco intitulado Valsa-Choros com o próprio Francisco Mignone ao piano. Outros nomes foram os de Cláudio Santoro, Alberto Nepomuceno e Camargo Guarnieri. De importância desmedida para a construção de um repertório pianístico brasileiro está a Antologia da Música Erudita Brasileira, gravada em dois volumes por Arnaldo Estrela, intérprete dos mais celebrados na época, que passeia por obras do gênero a partir do século 18. Artistas pouco lembrados, como Brasilio Itiberê, Frutuoso Viana e Luis Cosme ficaram, assim, registrados para a posteridade.

O musicólogo Regis Duprat lembra-se bem dessa época. Em 1968, admirador do trabalho realizado pelo selo Festa, procurou Irineu para propor a gravação de uma obra de André da Silva Gomes, mestre de capela da Catedral da Sé, em São Paulo, no período colonial. "O Irineu trocava informações, era um sujeito muito aberto ao diálogo com quem entendia de música", lembra Duprat. Nas circunstâncias da elaboração da missa de Gomes, que possui 40 minutos de duração, uma enorme produção era necessária, com orquestra, solistas e coro de oito vozes. "Era um trabalho significativo e ele coordenou tudo isso com serenidade absoluta; era como se ele tivesse uma varinha mágica: tudo saia naturalmente", comenta. A consciência de Irineu era tamanha, lembra Duprat, que ele jamais desanimava com as dificuldades. "Eu tinha quedas de entusiasmo e ele dizia: não, Regis, não há razão para isso, estamos fazendo um trabalho que vai durar séculos, então vale a pena o sacrifício".

O maestro Julio Medaglia foi convidado para reger a missa de André da Silva Gomes e assim conheceu Irineu. "Ele vivia envolvido com as artes, era um homem universal, vivia em função da criatividade humana, dia e noite", conta Medaglia. Ele se lembra da luta de Irineu para conseguir registrar a música erudita brasileira como um exemplo de coragem sem precedentes. "Não havia, na época, leis de incentivo, ele corria atrás de tudo por conta própria e conseguia". Ainda muito jovem, no entanto, Medaglia já ficara impressionado ao ouvir os discos dos poetas recitando suas próprias criações. "Eu ainda não me interessava por artes, queria ser jogador de futebol, e aquelas gravações me causaram imensa impressão; foram fundamentais para descobrir meu gosto pela cultura", relembra.

Dos 103 discos do acervo do selo Festa, se a música popular esteve em falta em termos de quantidade, sua presença não deixou por menos no que se refere à qualidade. No fim dos anos 50 e início da década de 60, destaque para as gravações de Lenita Bruno, cantora lírica brasileira mais popular da época, com Por Toda Minha Vida (músicas de Tom Jobim e Vinicius) e Modinhas Fora de Moda (gravações de modinhas de Mário de Andrade, Villa-Lobos, Carlos Gomes, Jaime Ovalle, entre outros). Outra raridade do selo é o disco Festa Dentro da Noite, último álbum do pianista, compositor e arranjador Oswaldo Gogliano, o Vadico.

Vadico, conhecido por suas parcerias com Noel Rosa - "Feitio de Oração", "Feitiço da Vila" e "Conversa de Botequim" -, indiretamente acabou fazendo parte daquele que seria o disco de maior notoriedade e reconhecimento do selo Festa. Em maio de 1956, recém-chegado de Paris, Vinicius procurava um parceiro para musicar sua tragédia grega adaptada para o carnaval carioca, Orfeu da Conceição. Sua primeira opção foi Vadico, na época com 46 anos, e responsável pelos arranjos da Rádio Mayrink Veiga. Mesmo com uma experiente bagagem por ter feito sucesso nas décadas de 30 e 40 com Noel, e por ter trabalhado como arranjador em Hollywood, com Carmen Miranda, Vadico acabou recusando o convite de Vinicius. Uns dizem que ele não se "julgava à altura" de tamanha responsabilidade, outros dizem que ele estava muito doente. Independente dos motivos, o importante é que o "não" de Vadico fez com que uma espécie de um complô entre amigos - como Ronaldo Bôscoli e Chico Feitosa - fizesse com que o Poetinha se acostumasse com a idéia de que um pianista chamado Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim tinha o gabarito necessário para musicar seu Orfeu. Com Vinicius já convencido de que encontraria seu novo parceiro, faltava marcar o encontro oficial, que aconteceria com a ajuda de um amigo em comum, Lucio Rangel. O local não era difícil de adivinhar: o bar Villarino.