terça-feira, 25 de agosto de 2015

O homem que gravou o que queria ouvir - parte 3

Cultura em terras lusas


Por André Toso e Lucas Nobile
  
Era um dia comum de 1971. Em São Jose dos Campos, Gracita Garcia Bueno estava prestes a se formar no magistério e estudava na casa de uma colega para a prova de biologia. Os livros de genética, no entanto, tiveram que ser abandonados de repente após receber uma ligação de sua mãe pedindo para que comparecesse na casa de sua avó, mãe do Irineu, pois o Irineu Garcia tinha chegado do Rio de Janeiro. Ao chegar, Gracita sentou-se à mesa com os familiares, e ouviu que ele teria de deixar o Brasil em três meses, fora avisado pelos militares e achava melhor não contrariá-los. O destino escolhido: Lisboa.
Segundo Gracita, seu tio estava sempre bem informado sobre os acontecimentos políticos da época, mas era pouco afeito a ideologias. "O incentivo à cultura e a convivência dele com os intelectuais do período - a maioria com tendências de esquerda - fizeram com que ele sofresse perseguições do regime", relembra a sobrinha do jornalista. Ruy Castro, que estava em Lisboa trabalhando na revista Seleções, conta que nunca entendeu muito bem os motivos de Irineu ter deixado o Brasil. "Nunca me pareceu que estivesse em Portugal por problemas políticos - tanto que, em 1974, passou mais de um mês no Rio e, quando chegou de volta a Lisboa, não me disse nada sobre qualquer dificuldade que tivesse tido para entrar ou sair".

Independente dos motivos, Irineu continuou a prestar serviços à cultura em Portugal. Crítico de literatura brasileira e latino-americana, além de comentarista dos mais diversos assuntos em sua coluna Zona Tórrida, no Jornal de Letras, Irineu criava uma ponte entre a inteligência brasileira e a portuguesa. Ele foi responsável, por exemplo, pela montagem da "Ópera do Malandro", de Chico Buarque, em terras lusitanas. "Ele fez o meio-de-campo para a cultura brasileira entrar no país europeu", afirma Gracita. Escrevia colunas e divulgava a literatura nacional, enquanto continuava como correspondente do Jornal do Brasil.

Apesar de bem recebido em Portugal, sua convivência em Lisboa não se comparava às tardes boemias e agitadas da época do Villarino. Apesar de bater ponto no Pabe, um simpático pub frequentado por jornalistas e políticos, Ruy Castro recorda que Irineu era muito solitário, morava em um hotel próximo ao Parque Eduardo VII e não falava de nenhuma mulher que estivesse namorando. Vivia em função de visitas de amigos brasileiros, prometidas por cartas enviadas principalmente por Otto Lara Resende e Jorge Amado. "Ele não dizia nada sobre sua vida pessoal, de vez em quando sumia por duas semanas e voltava contando que havia ido a lugares estranhos", diz Ruy Castro. Como fizera a vida toda, continuava vivendo por e para a cultura. Quando estava prestes a retornar ao Brasil para assumir um cargo de direção da Funarte, faleceu no dia 3 de abril de 1984, após sofrer um infarto fulminante.

Treze anos após interromper os estudos de biologia naquela tarde em que seu tio Irineu anunciara seu auto-exílio, Gracita recebeu uma ligação de Carlos Drummond de Andrade. Com voz fina e serena, o poeta mineiro queria saber se a família iria trazer o corpo do jornalista para o Brasil. A artista plástica foi sincera e disse que não teria condições de pagar o traslado do corpo. "Ele disse para ficarmos tranquilos, pois diversos poetas haviam juntado dinheiro para trazê-lo". Além disso, o vice-governador Darcy Ribeiro e o governador Leonel Brizola auxiliaram nos trâmites. "O Brasil perdeu um de seus melhores representantes na Europa", afirmou Brizola logo após a morte do jornalista. No dia 8 de abril, às oito da manhã, o vôo 711 da Varig pousou em Congonhas trazendo o corpo de Irineu Garcia. Ele seria enterrado na cidade de São José dos Campos, ao lado do túmulo de sua mãe. O selo Festa, como seu próprio criador previra, continua vivo.

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