quarta-feira, 19 de agosto de 2015

O homem que gravou o que queria ouvir - parte 1


Defensor das artes, o jornalista Irineu Garcia abusou da coragem ao criar uma gravadora independente e conseguir registrar um verdadeiro tesouro da cultura nacional


Por André Toso e Lucas Nobile

A elegância do jornalista Irineu Garcia era facilmente perceptível pelos trajes que vestia e pelo trato com as palavras. Sempre de terno alinhado, independente das altas temperaturas do Rio de Janeiro, era incapaz de pronunciar um palavrão sequer. Do alto de seus 1,90 m, apresentava traços firmes em seu semblante - familiar pelo bigode sempre bem aparado e pelo início de uma calvície que denotava respeito e experiência, marcas que lhe caracterizavam como um homem sábio e seguro. Calmo e reservado, Irineu gabava-se de não frequentar as praias cariocas, era amante da literatura latino-americana, apreciador de música erudita e, acima de tudo, um defensor implacável da cultura. Cronista do Jornal do Brasil e conhecido da grande parcela da intelectualidade do país nos anos 50, Irineu teve sua melhor ideia após ouvir gravações francesas de Paul Eluard declamando seu famoso poema Liberté e de André Gide comentando uma aula de piano.

A partir daquele momento, em meados de 1956, a iniciativa de convidar Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade para que realizassem algo semelhante surgiu naturalmente. Para isso, porém, Irineu decidiu montar uma gravadora independente, com ajuda financeira do amigo Arnaldo Pedro dos Santos. Nascia, assim, o selo Festa, idealizado, segundo o próprio jornalista, não para ser um sucesso comercial, mas sim para registrar para a posteridade a memória da música e da poesia brasileiras. A idéia de gravar poetas declamando suas próprias obras, até então inédita no Brasil, resultou em 67 discos ao longo dos 11 anos do selo Festa e contou com a participação de Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana, entre outras dezenas de poetas brasileiros. Irineu conseguiria, ainda, gravar poetas estrangeiros, como o cubano Nicolas Guillén, o espanhol Rafael Alberti, os chilenos Pablo Neruda e Gabriela Mistral, além do espanhol Federico Garcia Lorca, nas vozes de atores do teatro espanhol, e Fernando Pessoa, com narração do português Cinde Filipe. Além da poesia, Irineu também ajudou a registrar em disco sua admiração pela literatura e pelo teatro. Em 1957, o selo Festa gravou o livro "O Pequeno Príncipe", de Antoine Saint-Exupéry, uma preciosidade com tradução de Dom Marcos Barbosa, narração e direção de Paulo Autran, e música de Tom Jobim.

A habilidade de Irineu em reunir essa constelação de artistas pode ser entendida pela sua personalidade e sua excelente relação com intelectuais latino-americanos. Tanto no Brasil quanto em suas viagens ao exterior, o jornalista cativava e criava laços com os homens mais ilustres da cultura. Seus contatos no Ministério da Educação e no Departamento de Difusão Cultural, órgão do Itamaraty dirigido por seu amigo Mário Dias Costa, e o companheirismo de poetas diplomatas, como Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto e Augusto Frederico Schimdt, facilitavam os caminhos percorridos pela gravadora. Sua batalha o fazia correr atrás de apoios e patrocínios de empresas, atitude que se tornaria normal no futuro, mas que era novidade nos anos 50. E isso era mesmo necessário, já que Irineu não era um homem rico. Seus maiores bens eram a ousadia e seu jogo de cintura e temperamento, identificáveis desde sua juventude.

A família de Irineu era de uma pequena cidade chamada Cajuru, localizada no interior de São Paulo. No dia 17 de junho de 1920, sua mãe, grávida de nove meses, fizera uma viagem curta para resolver alguns problemas em Mococa: lá ele nasceu e foi registrado. Logo no início da juventude deixaria a casa dos pais para se arriscar no principal jornal de Ribeirão Preto. Mas a cidade rapidamente ficou pequena para suas pretensões e o jornalista se mudou para o Rio de Janeiro, onde começou trabalhar no Jornal do Brasil. "O Irineu se desligou muito rapidamente da família, ele vivia em outro mundo, se interessava por cultura e já ficava claro que ele dedicaria sua vida a isso", conta a sobrinha e artista plástica Gracita Garcia Bueno, detentora do acervo do selo Festa nos dias de hoje. Seguir seus próprios caminhos, de certa forma até de maneira solitária, seria uma marca do jornalista.

Em artigo publicado após a morte de Irineu, Otto Lara Resende escreveu que "você (Irineu) sempre gostou de gravar o que gosta de ouvir e quer que os outros ouçam. Por isso você gravou os poetas do Brasil e da América Latina. No seu nobre coração, você só recolheu poesia e música. E afetos, com que você partilhou a sua teimosa utopia de liberdade e justiça". A teimosia a que se refere Otto também se enquadra na insistência e na luta de Irineu por gravar compositores eruditos brasileiros totalmente desconhecidos do grande público. Com estrutura precária e pouco dinheiro, o jornalista coordenou o registro, por exemplo, de peças do barroco mineiro fundamentais para a memória das primeiras manifestações eruditas no Brasil. Nelas, a Orquestra Sinfônica Brasileira e a Associação de Canto Coral do Rio interpretam obras de José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita, Marcos Coelho Netto, Francisco da Rocha e Ignácio Parreira Neves. Um tesouro do século 18 que poderia muito bem ter sido esquecido se não fosse a ousadia de Irineu.

A exemplo dos poetas que declamavam suas próprias obras, o selo Festa trazia gravações de peças musicais regidas por seus compositores. Uma das raridades do acervo, registrada em 1963, é a Missa de São Sebastião, escrita para três vozes à capela por Heitor Villa-Lobos e até hoje pouco executada pelas orquestras. Além disso, dois concertos, um para harpa e outro para violino, de Radamés Gnatalli, um disco intitulado Valsa-Choros com o próprio Francisco Mignone ao piano. Outros nomes foram os de Cláudio Santoro, Alberto Nepomuceno e Camargo Guarnieri. De importância desmedida para a construção de um repertório pianístico brasileiro está a Antologia da Música Erudita Brasileira, gravada em dois volumes por Arnaldo Estrela, intérprete dos mais celebrados na época, que passeia por obras do gênero a partir do século 18. Artistas pouco lembrados, como Brasilio Itiberê, Frutuoso Viana e Luis Cosme ficaram, assim, registrados para a posteridade.

O musicólogo Regis Duprat lembra-se bem dessa época. Em 1968, admirador do trabalho realizado pelo selo Festa, procurou Irineu para propor a gravação de uma obra de André da Silva Gomes, mestre de capela da Catedral da Sé, em São Paulo, no período colonial. "O Irineu trocava informações, era um sujeito muito aberto ao diálogo com quem entendia de música", lembra Duprat. Nas circunstâncias da elaboração da missa de Gomes, que possui 40 minutos de duração, uma enorme produção era necessária, com orquestra, solistas e coro de oito vozes. "Era um trabalho significativo e ele coordenou tudo isso com serenidade absoluta; era como se ele tivesse uma varinha mágica: tudo saia naturalmente", comenta. A consciência de Irineu era tamanha, lembra Duprat, que ele jamais desanimava com as dificuldades. "Eu tinha quedas de entusiasmo e ele dizia: não, Regis, não há razão para isso, estamos fazendo um trabalho que vai durar séculos, então vale a pena o sacrifício".

O maestro Julio Medaglia foi convidado para reger a missa de André da Silva Gomes e assim conheceu Irineu. "Ele vivia envolvido com as artes, era um homem universal, vivia em função da criatividade humana, dia e noite", conta Medaglia. Ele se lembra da luta de Irineu para conseguir registrar a música erudita brasileira como um exemplo de coragem sem precedentes. "Não havia, na época, leis de incentivo, ele corria atrás de tudo por conta própria e conseguia". Ainda muito jovem, no entanto, Medaglia já ficara impressionado ao ouvir os discos dos poetas recitando suas próprias criações. "Eu ainda não me interessava por artes, queria ser jogador de futebol, e aquelas gravações me causaram imensa impressão; foram fundamentais para descobrir meu gosto pela cultura", relembra.

Dos 103 discos do acervo do selo Festa, se a música popular esteve em falta em termos de quantidade, sua presença não deixou por menos no que se refere à qualidade. No fim dos anos 50 e início da década de 60, destaque para as gravações de Lenita Bruno, cantora lírica brasileira mais popular da época, com Por Toda Minha Vida (músicas de Tom Jobim e Vinicius) e Modinhas Fora de Moda (gravações de modinhas de Mário de Andrade, Villa-Lobos, Carlos Gomes, Jaime Ovalle, entre outros). Outra raridade do selo é o disco Festa Dentro da Noite, último álbum do pianista, compositor e arranjador Oswaldo Gogliano, o Vadico.

Vadico, conhecido por suas parcerias com Noel Rosa - "Feitio de Oração", "Feitiço da Vila" e "Conversa de Botequim" -, indiretamente acabou fazendo parte daquele que seria o disco de maior notoriedade e reconhecimento do selo Festa. Em maio de 1956, recém-chegado de Paris, Vinicius procurava um parceiro para musicar sua tragédia grega adaptada para o carnaval carioca, Orfeu da Conceição. Sua primeira opção foi Vadico, na época com 46 anos, e responsável pelos arranjos da Rádio Mayrink Veiga. Mesmo com uma experiente bagagem por ter feito sucesso nas décadas de 30 e 40 com Noel, e por ter trabalhado como arranjador em Hollywood, com Carmen Miranda, Vadico acabou recusando o convite de Vinicius. Uns dizem que ele não se "julgava à altura" de tamanha responsabilidade, outros dizem que ele estava muito doente. Independente dos motivos, o importante é que o "não" de Vadico fez com que uma espécie de um complô entre amigos - como Ronaldo Bôscoli e Chico Feitosa - fizesse com que o Poetinha se acostumasse com a idéia de que um pianista chamado Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim tinha o gabarito necessário para musicar seu Orfeu. Com Vinicius já convencido de que encontraria seu novo parceiro, faltava marcar o encontro oficial, que aconteceria com a ajuda de um amigo em comum, Lucio Rangel. O local não era difícil de adivinhar: o bar Villarino.


4 comentários:

  1. Muito bom o conteúdo postado neste blog. Estou pesquisando o selo Festa e a figura de Irineu Garcia para uma tese de doutorado, mas ainda pairam muitas dúvidas.
    Há alguma indicação de outras fontes? É possível enviar perguntas por email à sobrinha de Irineu?

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    1. Caro Carlos,
      por favor envie seus contatos e perguntas para o e-mail: selofestadeirineugarcia@gmail.com
      Obrigada
      xx

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    2. Olá...

      Desculpe a mensagem. Mas estava precisando do contato de dona Gracita Garcia Bueno, proprietária do Selo Festa. A respeito de uma material fonografico lançado. Por acaso, saberiam onde consigo, ou se conseguem enviar ou indicar?

      Aguardo ansioso.
      Att, Diego Muller
      Canoas/RS

      51-981128369
      arqdiegomuller@hotmail.com

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