Caminho aberto para a bossa
Por André Toso e Lucas Nobile
Em volta da pequena mesa do bar Villarino, localizado na esquina da
avenida Calógeras com a Presidente Wilson, no centro do Rio, poetas,
escritores, radialistas e jornalistas se reuniam diariamente após o expediente.
Entre garrafas de cerveja e copos de uísque - envoltos pela fumaça de cigarros
acendidos um atrás do outro e pelas ideias que surgiam a enxurradas - aqueles
artistas criariam boa parcela do que de melhor se produziu de cultura
brasileira na época. Seria ali, também, que um encontro entre Vinicius de
Moraes, Tom Jobim e Irineu Garcia resultaria naquele que é considerado por
muitos como o primeiro registro fonográfico da Bossa Nova. Poeta e compositor,
conhecidos do público, descobriram no pouco lembrado jornalista Irineu Garcia a
oportunidade de tornar real suas criações.
Foi dali, do Villarino, que surgiu a idéia e o convite para o registro
de Canção do Amor Demais, gravado em abril de 1958 pelo selo Festa. As treze
faixas do famoso LP foram interpretadas por Elizete Cardoso. Embora estivesse
anos sem emplacar um disco de sucesso nas paradas, a cantora era a preferida de
Vinicius, mas não a primeira opção de Irineu Garcia. O fundador e diretor
artístico da gravadora enxergava Dolores Duran como a voz da vez e ela seria a
convidada - em vão. Dolores cobrou um cachê alto demais, até astronômico
levando-se em conta a estrutura praticamente amadora do selo Festa, sediado em
uma pequena sala da avenida Franklin Roosevelt, no Centro carioca. Diante da
recusa de Dolores, Irineu cedeu aos pedidos de Vinicius, e convidaram Elizete,
que conseguiu sua liberação junto a Vicente Vitale, diretor da gravadora que
ela fazia parte, a Copacabana Discos.
Ao contrário do que se diz, Canção do Amor Demais esteve longe de ser
um estouro de sucesso e de vendas, já que teve apenas 2 mil discos prensados e
distribuídos. Gravado nos estúdios da Odeon, o LP começou a apresentar mudanças
aos ouvidos dos brasileiros, e foi uma espécie de desbravador de caminhos para
a transformação drástica e definitiva que seria apresentada meses mais tarde no
álbum Chega de Saudade, de João Gilberto. Em Canção do Amor Demais, João, que
impressionou o público com a batida sincopada de seu violão nas faixas
"Chega de Saudade" e "Outra Vez", discordava do restante do
elenco em diversos pontos. De algumas letras de Vinicius, como "Serenata
do Adeus", carregada de sofrimento e de pessimismo, e principalmente do
jeito de Elizete cantar. Chegou a dizer a ela que aquele tipo de canção não
exigia uma voz tão empostada e embargada, mas a cantora lhe deu de ombros e
resolveu gravar de seu jeito característico de enaltecer a dor-de-cotovelo.
A gravação de Canção do Amor Demais pela etiqueta Festa chega a
levantar uma dúvida um tanto quanto pertinente. Por que artistas de tamanha
qualidade resolveram registrar esse disco por uma gravadora praticamente
desconhecida, e com uma estrutura física encerrada em "duas salas e
algumas cadeiras", como definia Irineu Garcia? Por dois motivos. O
primeiro é que, na época, as grandes gravadoras reconheciam o talento desses
músicos, mas achavam que sua música era pouco comercial, alegava-se que não
venderiam. O segundo é que no selo criado pelo jornalista e boêmio Irineu, eles
poderiam registrar seu trabalho com a liberdade que quisessem, pois prestariam
contas não a um patrão, mas a um amigo de Villarino. Em 1958, Vinicius ainda
tinha a preocupação de manter uma imagem como diplomata do Itamaraty. Embora o
trabalho em Canção do Amor Demais se resumisse a letrar canções populares de
Jobim, com Irineu, ele tinha o aval para assinar na contracapa "poesia:
Vinicius de Moraes", tudo para não alterar os ânimos e evitar qualquer celeuma
com as autoridades do governo. Ao escrever a contracapa do disco, Vinicius
abusou da diplomacia. De tanto zelo com as palavras a serem escolhidas, e de
maneira até estranha, o poeta nem sequer menciona o violão de João Gilberto.
Junto ao nome de João, também foram relegados à omissão outros músicos
participantes, como o baterista Juquinha, o flautista Nicolino Cópia, o
Copinha, o violinista Irani Pinto, o trompista Herbert, o contra-baixista Vidal
e os trombonistas Gaúcho e Maciel. Segundo o próprio Irineu, a ausência dessa
ficha técnica do disco se deu por uma certa inexperiência do produtor.
Descuido esse contrário ao clima de amizade e descontração iniciado
entre Irineu e os artistas em dezembro de 1957. Tom teve total liberdade para
trabalhar com as orquestrações - sem orçamento, com grande parte do pagamento
saindo do bolso do próprio Irineu -, Vinicius melhorava alguns poemas e criava
os que estavam faltando. A afinidade entre os três fazia o trabalho fluir, e
até mesmo o impasse em relação ao título do disco foi resolvido de forma
amistosa. Vinicius sugeriu Eu não Existo sem Você, enquanto Tom optou por
Chega de Saudade. Irineu, como ele mesmo declarou, por ser o dono,
malandramente recomendou e aprovou Canção do Amor Demais.
Embora muitos considerem Canção do Amor Demais como o marco inicial da
Bossa Nova, na época, o grande público não chegou a ser completamente atingido
por suas primeiras inovações musicais. "Esse impacto aconteceu
principalmente entre outros músicos e cantores. Os Cariocas, por exemplo,
ouviram o disco da Elizete e já quiseram gravar "Chega de Saudade"
antes mesmo que o João Gilberto fizesse isso", diz o jornalista e escritor
Ruy Castro. Ainda nos corredores da gravadora Columbia, Badeco, violonista dos
Cariocas, abordou João e confessou que precisaria aprender a reproduzir aquela
batida tão diferente. Não conseguiria. Aquele jeito de tocar ainda era
inusitado demais para ser desvendado pelos músicos. João se ofereceu e gravou
"Chega de Saudade" com Os Cariocas, poucos meses antes de gravar seu
primeiro LP, em julho de 1958, e de espantar o mundo com a combinação perfeita
entre voz, violão, bateria, letras e arranjos que poderiam ser definitivamente
considerados Bossa Nova.
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