domingo, 23 de agosto de 2015

O homem que gravou o que queria ouvir - parte 2

Caminho aberto para a bossa


Por André Toso e Lucas Nobile

Em volta da pequena mesa do bar Villarino, localizado na esquina da avenida Calógeras com a Presidente Wilson, no centro do Rio, poetas, escritores, radialistas e jornalistas se reuniam diariamente após o expediente. Entre garrafas de cerveja e copos de uísque - envoltos pela fumaça de cigarros acendidos um atrás do outro e pelas ideias que surgiam a enxurradas - aqueles artistas criariam boa parcela do que de melhor se produziu de cultura brasileira na época. Seria ali, também, que um encontro entre Vinicius de Moraes, Tom Jobim e Irineu Garcia resultaria naquele que é considerado por muitos como o primeiro registro fonográfico da Bossa Nova. Poeta e compositor, conhecidos do público, descobriram no pouco lembrado jornalista Irineu Garcia a oportunidade de tornar real suas criações.

Foi dali, do Villarino, que surgiu a idéia e o convite para o registro de Canção do Amor Demais, gravado em abril de 1958 pelo selo Festa. As treze faixas do famoso LP foram interpretadas por Elizete Cardoso. Embora estivesse anos sem emplacar um disco de sucesso nas paradas, a cantora era a preferida de Vinicius, mas não a primeira opção de Irineu Garcia. O fundador e diretor artístico da gravadora enxergava Dolores Duran como a voz da vez e ela seria a convidada - em vão. Dolores cobrou um cachê alto demais, até astronômico levando-se em conta a estrutura praticamente amadora do selo Festa, sediado em uma pequena sala da avenida Franklin Roosevelt, no Centro carioca. Diante da recusa de Dolores, Irineu cedeu aos pedidos de Vinicius, e convidaram Elizete, que conseguiu sua liberação junto a Vicente Vitale, diretor da gravadora que ela fazia parte, a Copacabana Discos.

Ao contrário do que se diz, Canção do Amor Demais esteve longe de ser um estouro de sucesso e de vendas, já que teve apenas 2 mil discos prensados e distribuídos. Gravado nos estúdios da Odeon, o LP começou a apresentar mudanças aos ouvidos dos brasileiros, e foi uma espécie de desbravador de caminhos para a transformação drástica e definitiva que seria apresentada meses mais tarde no álbum Chega de Saudade, de João Gilberto. Em Canção do Amor Demais, João, que impressionou o público com a batida sincopada de seu violão nas faixas "Chega de Saudade" e "Outra Vez", discordava do restante do elenco em diversos pontos. De algumas letras de Vinicius, como "Serenata do Adeus", carregada de sofrimento e de pessimismo, e principalmente do jeito de Elizete cantar. Chegou a dizer a ela que aquele tipo de canção não exigia uma voz tão empostada e embargada, mas a cantora lhe deu de ombros e resolveu gravar de seu jeito característico de enaltecer a dor-de-cotovelo.

A gravação de Canção do Amor Demais pela etiqueta Festa chega a levantar uma dúvida um tanto quanto pertinente. Por que artistas de tamanha qualidade resolveram registrar esse disco por uma gravadora praticamente desconhecida, e com uma estrutura física encerrada em "duas salas e algumas cadeiras", como definia Irineu Garcia? Por dois motivos. O primeiro é que, na época, as grandes gravadoras reconheciam o talento desses músicos, mas achavam que sua música era pouco comercial, alegava-se que não venderiam. O segundo é que no selo criado pelo jornalista e boêmio Irineu, eles poderiam registrar seu trabalho com a liberdade que quisessem, pois prestariam contas não a um patrão, mas a um amigo de Villarino. Em 1958, Vinicius ainda tinha a preocupação de manter uma imagem como diplomata do Itamaraty. Embora o trabalho em Canção do Amor Demais se resumisse a letrar canções populares de Jobim, com Irineu, ele tinha o aval para assinar na contracapa "poesia: Vinicius de Moraes", tudo para não alterar os ânimos e evitar qualquer celeuma com as autoridades do governo. Ao escrever a contracapa do disco, Vinicius abusou da diplomacia. De tanto zelo com as palavras a serem escolhidas, e de maneira até estranha, o poeta nem sequer menciona o violão de João Gilberto. Junto ao nome de João, também foram relegados à omissão outros músicos participantes, como o baterista Juquinha, o flautista Nicolino Cópia, o Copinha, o violinista Irani Pinto, o trompista Herbert, o contra-baixista Vidal e os trombonistas Gaúcho e Maciel. Segundo o próprio Irineu, a ausência dessa ficha técnica do disco se deu por uma certa inexperiência do produtor.

Descuido esse contrário ao clima de amizade e descontração iniciado entre Irineu e os artistas em dezembro de 1957. Tom teve total liberdade para trabalhar com as orquestrações - sem orçamento, com grande parte do pagamento saindo do bolso do próprio Irineu -, Vinicius melhorava alguns poemas e criava os que estavam faltando. A afinidade entre os três fazia o trabalho fluir, e até mesmo o impasse em relação ao título do disco foi resolvido de forma amistosa. Vinicius sugeriu Eu não Existo sem Você, enquanto Tom optou por Chega de Saudade. Irineu, como ele mesmo declarou, por ser o dono, malandramente recomendou e aprovou Canção do Amor Demais.


Embora muitos considerem Canção do Amor Demais como o marco inicial da Bossa Nova, na época, o grande público não chegou a ser completamente atingido por suas primeiras inovações musicais. "Esse impacto aconteceu principalmente entre outros músicos e cantores. Os Cariocas, por exemplo, ouviram o disco da Elizete e já quiseram gravar "Chega de Saudade" antes mesmo que o João Gilberto fizesse isso", diz o jornalista e escritor Ruy Castro. Ainda nos corredores da gravadora Columbia, Badeco, violonista dos Cariocas, abordou João e confessou que precisaria aprender a reproduzir aquela batida tão diferente. Não conseguiria. Aquele jeito de tocar ainda era inusitado demais para ser desvendado pelos músicos. João se ofereceu e gravou "Chega de Saudade" com Os Cariocas, poucos meses antes de gravar seu primeiro LP, em julho de 1958, e de espantar o mundo com a combinação perfeita entre voz, violão, bateria, letras e arranjos que poderiam ser definitivamente considerados Bossa Nova.

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