quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Retrato Póstumo de Irineu Garcia



por José Carlos Oliveira
Caderno B – Jornal do Brasil 
08/04/1984

     Às 10 horas da manhã, em Lisboa, morreu Irineu Garcia. Deitara-se nos braços da noite, - a noiva preferencial desse galante cavaleiro – e num cavalo de trapos de treva, levando a noiva na garupa, mergulhou na paz – a paz, meu rapaz, o enlace do noivo com suanoiva, as bodas com mistérios e astros que aguardaste sete anos e mais sete, e outros sete e mais sete, para finalmentena manhã lisboeta, onde o sol bate nos muros encardidos  - finalmente não estares mais ali, na residência de Lia e de lida, e sim na morada que era desde sempre tua namorada – a outra filha de Labão, Rachel, por que serviras tão curta vida por amor tão longo...

     Toda vida é curta quando se tem pequena ambição.

     Um escritor português, que se conhece pela identidade de escritor, foi procurar Irineu Garcia `as 10 horas da manhã e não encontrou Irineu Garcia. Ele já tinha ido a galope no seu cavalo de trapos. Sempre `as 10 horas da manhã, alguém precisava estar com Irineu e só podia ser escritor ou artista. As outras atitudes existenciais não lhe batiam à porta, mas deveriam aguardá-lo pelas cinco horas da tarde no bar onde ele aparecia `as cinco horas da tarde. Em qualquer cidade onde ele estava, os relógios sempre haveriam de marcar cinco horas e ele deveria estar chegando a las cinco em punto de la tarde, ao bar, qual bar? “o bar do Irineu Garcia, rapaz! Aquele bar onde ele chega `as cinco horas, seja qual for a cidade!”

     Dele se pode dizer que bebericava. Whisky. Molhava a boca. Degustava. Conversava. Cinco minutos degustando um gole. Cinco minutos depois, outro gole. A isto se chama bebericar. Os apressados se embriagavam, Irineu Garcia seguia bebericando pelas madrugadas. Roupa escura, gravata. Rosto moreno mouro, nariz curvando-se em adaga. Em outras eras tinha sido visto às cinco da tarde na branca, no tenda dos beduínos, nos saaras ancestrais de onde trouxe aquela pela tisnada de sóis adustos, na adusta solidão dos desertos onde eventualmente o oásis respontam com sabor de tâmaras e de água fresca, mas nunca, em momento algum, repontam as miragens.

     De Irineu Garcia se dirá que era esse beduíno. Na fornalha branca, no cansaço, no sono, na sede, na fome, passaria ao largo da mais deleitável miragem, porquanto os nômades não procuram sonhos e – ao contrário – fogem deles, e por isso é que são nômades.

     Gostava de um tête-a-tête fraterno – mas um cara-a-cara de perfis justapostos, ombro a ombro na meia-luz, no ambiente subordinado – o ritualístico exercício do cochicho, da troca de maledicências inofensivas envolvendo este ou aquele, da permuta de confidências ao pé do ouvido. Era um bom companheiro. Estava sempre muito bem-informado, seguia de longe os avanços e descaminhos dos companheiros. Gostava de quatro cidades. São Paulo, de onde trouxe seu estilo fraternalmente austero: era um daqueles com quem podia se contar. Rio de Janeiro, onde aprendeu a afrouxar a gravata para rir com conforto o seu riso guardado na garganta, formado de estalidos infanto-juvenis, um riso que só seria gargalhada se ele abrisse a boca, mas nessas horas não abria a boca, suas bochechas trêmulas nos diziam: “Ninguém percebe, mas é verdade: Irineu está rindo às garagalhadas!” Lisboa, onde era avatar de Fernando Pessoa. Madri, onde seu coração rejubilava.

     Suavemente passou por aqui, suavemente se foi. No deserto de trapos de trevas onde está agora, o sol não arde; o oásis era isto aqui; as miragens seguem desprezíveis, mas há espiritualidade nesse outro deserto – as dunas impolutas da espiritualidade que vamos subindo, contentes, naquele côncavo, ou fundamento, onde tempo e ampulheta se harmonizam.

2 comentários:

  1. Boa tarde fiz parte da vida do Irineu José Garcia durante 2 anos e meio.Foi com as lágrimas nos olhos que o recordei.
    Fui ao velório dele. Onde apenas permaneci alguns minutos.Soube por que iria de avião para a última morada.
    Ficou a saudade, e algumas coisas por dizer. Obrigada por esta recordação, ainda tão permanente

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  2. Olá...

    Desculpe a mensagem. Mas estava precisando do contato de dona Gracita Garcia Bueno, proprietária do Selo Festa. A respeito de uma material fonografico lançado. Por acaso, saberiam onde consigo, ou se conseguem enviar ou indicar?

    Aguardo ansioso.
    Att, Diego Muller
    Canoas/RS

    51-981128369
    arqdiegomuller@hotmail.com

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